Carta aberta a José Alberto Tavim a propósito de o “Dicionário Histórico dos Sefarditas Portugueses. Mercadores e Gente de Trato”.
English version below.
Sonhava o cego que via: sonhava o que queria
Fernando Pessoa, Provérbios Portugueses
No passado 2 de Dezembro foi publicado no sitio do Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT) um texto intitulado “Um dicionário histórico dos sefarditas portugueses?” da autoria de José Alberto Tavim (JAT).
Esta carta aberta não é, não deve, nem pode ser, uma resposta a JAT, pelo simples facto de que escrita daquele jaez não tem (ou não deveria ter) lugar na comunidade científica. Tão só nos move a preocupação primária de dar voz a um silêncio, que, se acontecesse, deixaria impune uma abjecção intolerável na vida académica.
Falamos de um texto que finge ocupar-se da edição do “Dicionário histórico dos Sefarditas Portugueses. Mercadores e Gente de Trato” e que, não sendo uma crítica, e muito menos uma recensão, como é usual, é apenas uma tentativa de desacreditar o trabalho de outrem, um texto que perde a credibilidade porque treslê de princípio ao fim.
Um texto apasquinado, autofágico, fora de toda a ética universitária e da prática da atividade científica, a trazer-me à memória a frase de Rabelais, já muitas vezes dita, mas que retenho de Edgar Morin: “ciência sem consciência é miséria da alma”.
Se ao menos o texto de JAT deixasse transparecer, ou correspondesse a uma visão crítica, acrescentaria valor e mereceria o meu respeito. Mas não; o autor revela-se alguém que se compraz em encontrar em tudo coisas mal feitas, mesmo de entre aquelas que não estão lá. Será uma questão de temperamento, dado que dou a benefício de inventário que não seja um problema de intencionalidade mal resolvido.
Estamos perante um texto rancoroso, sem suporte analítico sério, muito próximo da denúncia não se sabe bem porquê, nem a quem aproveita. Como o cego que sonhava que via, também o autor do apasquinado viu o que quis. E por isso, para seu gáudio, criou um espantalho e, como na metáfora do nó górdio, não tendo a seriedade necessária para desatar uma leitura atenta e cuidada, como lhe competia, cortou com palavras de azedume e de forma mordaz o nó que, salvo melhor opinião, só a ele, pessoalmente, o desacreditam.
Texto egocêntrico, centrifugador porque marginaliza todo o corpo do dicionário, de que claramente não se ocupou. Partindo da pretensa análise de textos da sua autoria, cuja informação trabalhámos, é como se falasse em defesa da honra pessoal, supostamente ofendida. Engana-se. A autoria dos seus textos está salvaguardada de maneira explícita, quer assim o entenda ou não.
Colocada a questão ética e sem necessidade de mais atento exame, passarei adiante.
Em primeiro lugar, é bom lembrar-lhe que, em qualquer sociologia da leitura, o autor não é dono da sua escrita, uma vez publicitada; esta é muito mais pertença do leitor a quem incumbem as múltiplas leituras, criando, o que Paul Ricoeur chama de auditório do texto. Se quiser aprofundar o assunto, lembro-lhe o que seguramente não desconhece (ou não devia desconhecer): entre outras, algumas páginas de Umberto Eco (as que dedica à interpretação e aos seus limites e ainda a obra Lector in fabula); ou as de Paul Ricoeur, que tão bons serviços prestam à polissemia e à semântica dos textos; ou Foucault para as questões referentes à relação biunívoca entre o leitor e o texto, por um lado, e o autor e o seu texto, por outro. Manifestamente, Susan Sontag, por si citada, não chega.
A informação estruturada pelos seus textos e só essa, exclusivamente, nos interessou, foi trabalhada na perspetiva de uma pesquisa no domínio da história económica e social das comunidades sefarditas portuguesas, em conformidade com os objetivos ontológicos de um projeto de investigação mais vasto do que seria natural para a feitura de um Dicionário. A área de trabalho deste, nada tem a ver com estudos de judaísmo, como de resto, claramente se define no texto de apresentação do Dicionário e que até, pessoalmente por mim lhe foi explicado*.
Como metodologia de trabalho usámos a informação disponível, tendo tido o cuidado de, permanentemente, remeter os nossos leitores, por via da citação bibliográfica, para os estudos que nos serviam de referência na construção do nosso texto. Ainda aqui, inevitavelmente, os textos (os seus e os nossos) relacionam-se entre si, como sempre acontece na relação intertextual, por via de filiações nem sempre bem explicadas, mas que pertencem por inteiro ao domínio da interpretação.
Como se, por cima do rio das palavras se soerguesse sempre a fala de um autor ausente, o próprio JAT, e que, constantemente se recupera e repõe no lugar que lhe é devido. Por isso, a sua jeremiada a propósito de atropelos aos seus textos vale zero, porquanto a sua ausência é sempre, comprovadamente, uma presença ativa na nossa escrita. Certamente podíamos ter feito melhor. Como em tudo na vida, sempre se pode fazer melhor. Mas sempre a intentio textorum dos seus escritos foi respeitada.
Em todas as “entradas” do Dicionário preservámos, por meio da citação, a voz dos autores, recolhendo a informação que estava mais próxima dos objetivos que tínhamos em mente, ou seja e uma vez mais, a que dizia respeito à vida económica e social dos agentes e, eventualmente, e para melhor compreensão dos nossos leitores, num ou noutro ponto, a sua circunstância.
Assim se construiu a discursividade historiográfica do Dicionário. Dizendo de outra maneira, ela é o lugar onde se descreve a informação que considerámos significante para o nosso trabalho, sendo esta descrição, inevitavelmente, uma hermenêutica.
Depois, se no tratamento que demos à informação original, a sua no caso vertente, alguma ambiguidade subsiste, assumimos eventuais situações menos conseguidas, mas muito longe do próprio uso da sua textualidade. Mas se sentir os seus direitos ameaçados ou prejudicados, aja em defesa do que achar legítimo. Diga que houve plágio – o que, prudentemente, não se atreveu a dizer, porque, de facto, não existe. Mas não tergiverse. Não apouque. Não insinue. Não insulte.
Retira mérito ao Dicionário por entender ser grave que as entradas não sejam assinadas. Também a este propósito, algo deve ser dito. Como se depreende do que foi explicado acima, este Dicionário não foi estruturado da forma habitual, ou seja, chamar especialistas temáticos que actualizam o conhecimento e assinam os verbetes. Seguimos um modelo diferente. Inovador? Nem sequer. Apenas as condições objetivas do projeto de investigação definiram o modelo da pesquisa. A informação recolhida e tratada, alguma da qual inédita (foram rastreados duzentos e sessenta processos da Inquisição na Torre do Tombo), foi sendo publicitada; a seu tempo o grupo de investigação organizou, a propósito, Cursos Livres, Colóquios e Seminários; apresentou comunicações em Congressos, escreveu artigos que foram publicados em revistas científicas.
A edição deste Dicionário foi o meio escolhido para dar a conhecer uma pequena parte da informação recolhida no decorrer de um projeto de investigação, a qual ainda permanece inconclusiva em demasia. Não obstante, está a ser usada, na preparação de teses de doutoramento e de pós-graduação, correspondendo, deste modo, aos objectivos inicialmente fixados, ou seja, transformar-se em instrumento útil de trabalho para quem estuda histórica económica e social da época moderna e o papel que nela tiveram os sefarditas portugueses.
A designação de “bolseiros” usada por JAT que, salvo melhor leitura, me parece ter-lhe dado conexão depreciativa, é, como se sabe, a designação usual dos utentes das bolsas atribuídas pela FCT. Durante o período que corresponde à elaboração do projecto três elementos da equipa concluíram as provas de doutoramento, sete concluíram o Mestrado, sendo que destes, quatro estão a preparar o doutoramento. Trata-se de jovens investigadores que têm vindo a consolidar aprendizagens e competências, sendo já hoje, inegavelmente, merecedores de comprovado reconhecimento científico.
Na condição que lhe é inerente, ou seja, a de ser uma investigação coletiva, não se acoitam nem se escondem equívocos sob anonimato. Inexperiências e fragilidades, se existirem, essas, são minhas. Mas depois do que escreveu não lhe reconheço competência ética, profissional ou científica que lhe permita dizer o que disse, ou que venha a dizer.
Para acabar de vez, dir-lhe-ei que é difícil responder com dignidade à indignidade. Tirar frases do contexto original e usá-las como arma de arremesso, é como jogar à vermelhinha: viciar o jogo para enganar incautos. Como, por exemplo, quando alude ao uso do conceito de validação da discursividade historiográfica e distorce a semântica. Para não falar na demagogia de submundo com que, no seu entender, a FCT gasta dinheiros públicos e se permite financiar “coisas destas”, referindo-se, claro, ao Dicionário. Chegados aqui, as suas palavras já não são uma questão de falta de ética, mas sim uma falta de vergonha.
Como se diz na sabedoria antiga Somos escravos das palavras que dissemos e donos das que calámos. No seu caso, acho que, literalmente, as suas palavras amarraram-no, implacavelmente, ao pelourinho. É o preço que o cego paga por sonhar que via, quando tão só sonhava o que queria. Aconteceu-lhe: só viu o que quis ver. O que é grave. Se não estivesse cego, podia ter visto muito mais, porque muito mais havia para ver.
Passou-nos ao lado – a ambos – a possibilidade de uma discussão sergiana que, quem sabe, nos levaria ao modelo fecundo de Richard Faynman: “Quem pensar que compreende está provavelmente enganado”. Culpa sua. Lamento. Surpreendeu-me que tenha lançado mão a tão despudorada artimanha. Importante seria, talvez, saber o que, o quê, ou quem o cegou, ou o ajudou a cegar, mas não desfio as contas desse rosário. O seu escrito não poderia ser mais descaradamente desonesto. Por tudo o que fica dito, este assunto morre aqui.
A. A. Marques de Almeida
Investigador responsável pelo Projeto (FCT) POCTI/HAR/42393/2001
Professor Catedrático Jubilado da Universidade de Lisboa
* Vem a propósito manifestar estranheza pelo seu comportamento: quando conversámos sobre as questões inerentes à construção do Dicionário tudo isto lhe foi explicado de viva voz, pelo que não pode manifestar desconhecimento. E já agora, tendo tido consigo a atenção de lhe oferecer, com dedicatória, um exemplar do Dicionário, ainda antes de ter sido apresentado publicamente, parece-lhe curial – para não dizer outra coisa – que tenha publicado o seu texto sem ter a consideração de me escrever uma nota, um simples telefonema, avisando-me do que tencionava fazer?
Lisboa, 10 de Janeiro de 2011.
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